P. EaD: A educação fora do modelo tradicional
Escolhemos educar nossos filhos numa escola privada e flexível, a Clonlara School Off Campus, que reconhece caminhos fora do currículo tradicional. E não, essa escolha não foi feita por amor e por crítica. Amor à infância, ao vínculo, à curiosidade. E crítica a um sistema tradicional que, sendo público ou privado, costuma funcionar como uma máquina de padronizar vidas, produzir obediência e camuflar sofrimento com boletins e provas.
Como dito anteriormente, se encontrássemos escola tradicional, pública ou privada, que fosse, de fato, um espaço onde crianças florescem, onde a saúde mental é cultivada e a cidadania se aprende na prática, provavelmente estaríamos lá com os nossos filhos. Mas o que vejo — e vi, ano após ano, tanto como aluna quanto como professora, pesquisadora e mãe — é uma estrutura cansada, com professores adoecidos, alunos ansiosos e um currículo que prepara para o vestibular, não para a vida.
Por isso, minha pergunta nunca foi apenas “escola pública ou privada?”, e sim: Quem educa? Para quê?
Não romantizo. Há dias muito difíceis, há muitas dúvidas, há muitos pesos. Mas ao menos não terceirizo o que considero mais sagrado: o direito deles de existir como são, de se expressar, de aprender sem mutilações.
Quem educa, então? Educamos juntos. Eu e o pai, como facilitadores. Eles, uns aos outros. Os livros, os filmes, as trocas, os erros. E para quê educamos? Para que não se tornem apenas peças de uma engrenagem. Para que reconheçam quando uma estrutura adoece. Para que saibam parar e perguntar: “isso me serve?”, “isso faz sentido?”, “isso é justo?”, “isso ressoa comigo?”.
Educar, para mim, é esse ato radical de afirmar que a infância e a adolescência não são um ensaio. São vida plena, aqui e agora. E que ninguém — nem o Estado, nem o mercado, nem os velhos manuais — pode roubar esse direito.
E não estou dizendo que é fácil. Quando decidimos matricular Ana e Davi na Clonlara School Off Campus, logo percebemos que a estrutura oferecida pela própria Clonlara também não seria, por si só, suficiente para sustentar nossa jornada de aprendizado. Não foi por negligência ou má vontade da tutora designada para nossa família, mas porque ela tinha suas próprias limitações. Seu único recurso real era apontar para as diretrizes do MEC e para as exigências burocráticas da certificação – algo que não nos ajudava em absolutamente nada no dia a dia da aprendizagem.
A sensação inicial foi de desamparo. Se não podíamos contar com a tutora para nos orientar de forma próxima, e se as demais famílias da Clonlara pareciam seguir caminhos muito diferentes dos nossos — muitas vezes mais estruturados ou com um perfil completamente distinto —, quem nos apoiaria? Quem validaria ou mesmo compreenderia nossas escolhas? Foi então que percebemos que, para sustentar essa jornada, precisaríamos construir nossa própria rede de apoio intelectual e afetiva. E foi na vastidão da internet que começamos a encontrar ecos da nossa intuição.
Descobrir o trabalho da Sandra Dodd https://sandradodd.com/unschooling foi um divisor de águas. Suas práticas e reflexões profundas sobre o Unschooling radical nos ajudaram a entender que não estávamos sozinhos — e que havia uma lógica sensível, coerente e poderosa por trás de escolhas que, à primeira vista, pareciam tão contraintuitivas à educação tradicional.
Peter Gray https://www.petergray.org/ , com suas pesquisas sobre o papel do brincar livre e da autonomia no desenvolvimento das crianças, nos deu respaldo científico, desarmando nossas inseguranças com dados, argumentos e histórias inspiradoras. E talvez o mais comovente tenha sido encontrar blogs de outras famílias Unschoolers ao redor do mundo: pais e mães compartilhando em detalhes suas rotinas, suas dúvidas, suas descobertas, suas angústias e epifanias.
Esses relatos foram alimento e farol. Ao ler experiências semelhantes à nossa, sentimos acolhimento, inspiração e coragem. Era como encontrar uma comunidade invisível, feita de palavras, que dizia: "Você não está sozinha. Existe um caminho possível e legítimo aqui". E mais do que isso — essas vozes nos mostraram que a beleza do Unschooling está justamente na multiplicidade: não há um único jeito certo de viver essa proposta, mas muitos jeitos legítimos, todos construídos com escuta, presença e confiança nas crianças.
A construção do eu
Em nossa trajetória de unschooling, descobrimos que aprender não é simplesmente acumular conteúdos, mas um processo contínuo de tornar-se alguém no mundo – com os outros, entre os outros, através dos outros. Nessa caminhada, autores como Norbert Elias, Herbert Blumer, e outros pensadores do interacionismo simbólico se tornaram aliados invisíveis, ajudando-nos a entender melhor o que está em jogo quando dizemos que queremos uma educação baseada na liberdade, no respeito ao ritmo da criança e na escuta de sua singularidade.
A sociedade dentro de nós
Norbert Elias nos mostra que o “indivíduo” e a “sociedade” não são opostos, mas dimensões entrelaçadas de um mesmo processo. Ele afirma que somos formados com os outros, não apesar deles. A sociedade está dentro de nós — nos gestos, nas palavras que usamos, nos hábitos que herdamos. Isso não quer dizer que estamos condenados à repetição ou à obediência cega, mas que qualquer tentativa de criar algo novo — como uma experiência de unschooling — precisa considerar que o mundo social já nos habita.
“O consentimento dado pelo indivíduo para viver em companhia de outros numa forma específica, por exemplo, num Estado, e estar ligado a outros como cidadão, operário ou fazendeiro, e não como cavaleiro, servo da gleba ou criador nômade de gado - esse consentimento e essa justificação são algo retrospectivo. Nesse assunto, o indivíduo pouca opção tem. Nasce numa ordem que possui instituições de determinado tipo e é condicionado com maior ou menor sucesso, para conformar-se a elas. Mesmo que pensasse que essa ordem e suas instituições não eram boas nem úteis, não poderia simplesmente tirar seu assentimento e cair fora. Poderia tentar escapar dela como aventureiro, vagabundo, artista ou escritor, ou fugir para uma ilha deserta - mesmo como refugiado, ele seria produto dela. Desaprová-la ou fugir dela não é menor sinal de condicionamento do que louvá-la e justificá-la [...] (E a sociedade não ataca, não pressiona, muito menos destrói a individualidade, justamente) [...] a coexistência de pessoas, o emaranhamento de suas intenções e planos, os laços com que se prendem mutuamente, tudo isso, muito longe de destruir a individualidade, proporciona o meio no qual ela pode desenvolver-se. Estabelece os limites do indivíduo, mas, ao mesmo tempo, lhe dá maior ou menor raio de ação. O tecido social, nesse sentido, forma o substrato a partir do qual e para dentro do qual o indivíduo gira constantemente e tece suas finalidades na vida”. Norbert Elias em “A sociedade dos indivíduos”.
Quando olhamos para nossos filhos aprendendo fora da escola tradicional, percebemos como essa interdependência se manifesta. Eles não estão “sozinhos” em casa; estão inseridos em redes de relações, de linguagem, de expectativas. Ao abrir mão da escola tradicional por uma alternativa à distância, não estamos eliminando a sociedade — estamos escolhendo com mais cuidado quais interações e quais mundos simbólicos queremos que façam parte de suas vidas cotidianas.
Aprender é interpretar
Herbert Blumer nos oferece uma chave poderosa para pensar a aprendizagem: a ideia de que agimos com base nos significados que as coisas têm para nós — e esses significados são construídos nas interações sociais. Ninguém aprende porque alguém mandou. Aprendemos porque algo ganhou sentido para nós — e esse sentido é tecido no encontro com o outro.
Ao invés de seguir um currículo fixo (e mais um oculto) da escola tradicional, nossos filhos constroem seu caminho perguntando: o que isso significa para mim? Por que isso me interessa? Como posso brincar com essa ideia? Por que eu tenho esse desejo agora? Essa atitude não é “falta de método” — é um método enraizado no que Blumer chama de interpretação simbólica, onde o sujeito participa ativamente da criação de sentido.
Essa perspectiva nos ajuda a entender por que alguns temas “pegam” e outros não. Por que Ana mergulha tão profundamente em seus universos fandom e por que Davi transforma cada jogo em uma narrativa existencial. Eles estão constantemente interpretando, redefinindo, ressignificando o mundo — e isso é aprendizagem.
A educação como processo de individuação
Para Elias, o processo de individuação — tornar-se uma pessoa única — acontece em relação à complexidade das interdependências sociais. Não existe eu sem tu. Não existe escolha “livre” fora de um contexto. Por isso, a liberdade que buscamos com o unschooling não é liberdade absoluta, mas liberdade situada, reflexiva, consciente das redes que a tornam possível.
Essa compreensão nos faz rejeitar tanto o individualismo ingênuo quanto o coletivismo autoritário. Queremos que nossos filhos sejam capazes de pensar com autonomia, sim — mas uma autonomia que reconhece a alteridade, que sabe negociar, que aprende a escutar e a se posicionar sem se isolar ou se submeter.
Desescolarizar é um trabalho simbólico
Desescolarizar não é apenas um ato administrativo ou legal. É um trabalho simbólico profundo, de reconstrução de significados. Precisamos reinventar o que é “educação”, o que é “infância”, o que é “sucesso”, o que é “aprender”. Cada dia vivido fora da lógica escolar tradicional é também uma forma de resistência simbólica — um gesto que diz: existem outras maneiras de aprender, de viver, de crescer, de ser gente.
Inspirados por Blumer, entendemos que esses gestos constroem um “mundo simbólico” novo, um campo de significações em disputa. E, com Elias, sabemos que esse campo não se forma no vazio, mas em diálogo com histórias, memórias, e estruturas herdadas. O unschooling, para nós, é esse campo fértil onde novas formas de ser e aprender podem germinar — com paciência, escuta e coragem.
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