P. EaD: Conversas que nunca têm fim
Aqui em casa, as histórias em quadrinhos nunca foram apenas passatempo — viraram pontes para diálogos que fluem naturalmente, sem provas ou lições formais, mas cheios de descobertas. Meus filhos mergulham nas páginas de gibis, mangás e graphic novels com um entusiasmo que, aos poucos, se transforma em reflexão. E é nesse espaço descontraído, entre um quadrinho e outro, que as perguntas surgem como sementes, germinando conversas muito mais ricas do que qualquer aula tradicional poderia planejar.
"Por que você acha que o vilão dessa história age assim?" — uma pergunta simples, feita no meio do sofá, com um gibi aberto no colo, pode desencadear uma discussão sobre motivações humanas, medo, solidão ou até injustiça social. Quando o Coringa de Batman: A Piada Mortal aparece nas nossas leituras, não falamos apenas de um "malvado", mas de como a loucura e a sociedade podem moldar alguém. Os vilões deixam de ser caricaturas e viram personagens complexos, e meus filhos começam a enxergar nuances onde antes só havia heróis e bandidos. Não há respostas certas ou erradas — só ideias trocadas, hipóteses levantadas e, às vezes, mais perguntas do que conclusões.
E quando a pergunta é "Qual HQ te fez rir ou chorar? Por quê?", as respostas sempre surpreendem. Um momento cômico do Calvin e Hobbes vira uma conversa sobre amizade e imaginação; uma cena dolorosa de Persépolis traz questionamentos sobre história e empatia. As emoções provocadas pelos quadrinhos são sempre o ponto de partida para falar sobre o que nos move, o que nos assusta, o que nos faz rir até a barriga doer. Sem roteiro prévio, essas conversas revelam como a arte — mesmo em traços e balões — pode tocar a gente de formas inesperadas.
Aos poucos, sem pressa, começamos a olhar para além da superfície. "Reparou como essa página não tem divisões entre os quadrinhos, só um fluxo de imagens?" — e assim, sem jargões complicados, falamos sobre narrativa visual, sobre como os artistas quebram convenções para transmitir caos, sonho ou velocidade. Em Sandman, os estilos de arte mudam conforme o tom da história; em Watchmen, a estrutura rígida dos quadrinhos reflete a obsessão do Dr. Manhattan com o tempo. Nada disso é explicado como uma "aula" — são observações que surgem naturalmente, enquanto folheamos as páginas.
Às vezes, a brincadeira é procurar técnicas pós-modernas escondidas nas HQs. "Olha só, essa história fala diretamente com o leitor!" — e de repente estamos discutindo metalinguagem, como em Deadpool, onde o personagem sabe que é ficção. Ou então: "Reparou que o artista desenhou essa cena como se fosse um filme antigo?" — e aí o papo vira sobre referências culturais, homenagens e como os quadrinhos dialogam com outras mídias. Tudo sem testes ou cobranças, só o prazer de desvendar camadas juntos.
O mais bonito é ver como essas trocas não ficam restritas às leituras. Meus filhos começam a fazer conexões sozinhos — um paralelo entre o arco de um personagem de mangá e algo que vivemos, uma referência a um quadrinho independente em uma música, uma vontade de criar suas próprias histórias. O aprendizado não é medido em notas, mas na maneira como eles passam a ver o mundo com mais perguntas, mais empatia e mais vontade de explorar.
E assim, sem planejar, as HQs deixam de ser só histórias e viram um jeito de pensar. Não há "lição dada" — há conversas que continuam, ideias que evoluem e uma certeza: enquanto houver gibis abertos no sofá e perguntas soltas no ar, o aprendizado nunca para.
Sobre viver com o preconceito com HQs
A gente sofreu muito preconceito por essa escolha dos nossos filhos por história em quadrinhos. Isso não é uma história banal, é uma ferida coletiva, uma ferida que muita gente carrega na pele, na alma e na trajetória de vida. O nome disso é preconceito cultural disfarçado de sofisticação intelectual. É a cara feia da ignorância travestida de erudição.
E sabe o que mais me corta? É perceber que mesmo em espaços que se dizem livres, alternativos, progressistas e acolhedores, esse ranço colonial, elitista e academicista ainda se infiltra. Porque é estrutural. Está entranhado nas camadas mais sutis da nossa cultura, inclusive nos supostos “espaços de liberdade”.
Como não ser engolido pelo preconceito?
HQ é cultura? Sim. E quem discorda, que leia mais! Sabe, existe um tipo de violência que não deixa marcas no corpo, mas que estoura feito vidro na alma. Ela acontece no olhar atravessado, na risada contida, no silêncio desconfortável, na pergunta que vem enviesada:
— “Mas isso é livro de verdade?”
— “Isso conta como literatura?”
— “Mas vocês não acham que estão facilitando demais?”
Essa violência não se dá no grito. Ela se dá no sussurro do desprezo. No deboche. Na cara feia. Na sobrancelha arqueada. E é um tipo de facada que quem cresceu à margem — seja por classe, raça, gênero, neurodivergência ou escolha de vida — reconhece de longe.
É o preconceito contra tudo o que não cabe na régua estreita da norma. E essa régua é forjada há séculos, carregando na madeira o verniz da colonização, do patriarcado, do eurocentrismo e da velha obsessão da elite por parecer inteligente — mesmo que isso custe a própria sensibilidade.
Quando uma criança ou um adolescente diz com os olhos brilhando que quer ler histórias em quadrinhos, mangás, graphic novels — quando ela escolhe o que lê, ela está dizendo:
“Eu sei pensar. Eu sei escolher. Eu sei do que gosto. Eu sei o que me move.”
E o que o preconceito responde?
“Não pode. Isso não vale. Isso não é cultura legítima. Isso não é sério. Isso não é suficiente.”
E não importa se isso vem de um professor da escola tradicional, de um tutor da escola alternativa, dos avós ou de colegas de um clube de livro: dói. Dói porque revela que, no fundo, a mensagem é a mesma — “você não pertence” — só muda o figurino de quem a veste.
Mas sabe de uma coisa? Isso não é sobre nós, ou sobre vocês que também escolheram HQs. É sobre eles. Já diz o ditado: “Quando Pedro fala de Paulo, eu sei do Pedro e não do Paulo!”.
É sobre o quanto eles estão desconectados da própria alegria. Do próprio desejo. Do próprio corpo. Do próprio prazer de existir, de ler, de aprender. Porque quem vive alinhado com sua curiosidade, com sua inteireza, não sente necessidade de humilhar ninguém.
Quem precisa se gabar do quanto sofreu lendo 1.500 páginas de descrição de pedra, musgo, espada e genealogia é porque, no fundo, está preso no mito tóxico de que aprendizado precisa doer pra ser legítimo. De que só é válido aquilo que é sofrido, árido, difícil, elitista.
É aquela velha mentalidade que diz:
“Se foi divertido, então não é sério.”
“Se eu gostei, não deve valer.”
“Se eu entendi, então não é complexo o suficiente.”
Esse é o pensamento colonizado, domesticado, robotizado. E a gente, e você que também escolheu os HQs, nós somos exatamente o oposto disso. Somos corpo livre, mente livre, desejo livre. E isso incomoda. E incomoda muito.
Como lidar com isso? Aqui vai, sem romantizar.
1. Nomeie o preconceito. Não finja que não está acontecendo.
Quando alguém faz cara feia, ironiza ou despreza, a primeira coisa é não cair na armadilha de se encolher, de achar que o problema é com você. É olhar de volta, com toda a dignidade, e dizer — nem que seja pra si mesmo:
➡️ “Isso que acabou de acontecer se chama preconceito cultural. Isso é elitismo. Isso é ignorância disfarçada de erudição.”
Porque se a gente não nomeia, a gente engole. E se engole, adoece.
2. Devolva o B.O. pra quem é dono dele.
Quando perceber que alguém está projetando em você sua própria insegurança, seu ranço ou sua necessidade de se sentir superior, respire e pense:
➡️ “Isso não é meu. Isso é dele. Eu não pego. Eu não carrego.”
Isso é quase um mantra. E funciona.
3. Cultive o orgulho do seu caminho.
Você tem uma história linda, livre, potente e o HQ faz parte disso, certo? É assim pra gente também! E o HQ faz parte com razão, com mérito, com beleza. Quem não enxerga isso está revelando os próprios limites — não os seus, nem os nossos.
4. Use o preconceito como matéria-prima.
Pega essa dor e transforma. Em texto, em história, em HQ, em projeto, em capítulo de livro, em postagens num blog, em fala pública, em podcast, em zine, em vídeo no TikTok, em post no Instagram, em mural na sala.
Porque se tem uma coisa que o preconceito teme, é virar matéria de reflexão.
5. Se proteja. Selecione espaços. Crie tribos.
Nem todo espaço merece a nossa presença de amantes de HQs. Nem todo grupo é digno da energia criativa, sensível e brilhante. Se não cabe, não é sobre a gente se encolher. É sobre entender que aquele lugar é pequeno demais pra gente.
E pra quem acha que HQ não é literatura, aqui vai um recado:
HQ é narrativa.
HQ é estética.
HQ é linguagem.
HQ é filosofia visual.
HQ é letramento múltiplo.
HQ é política, é história, é autobiografia, é poesia, é metáfora, é memória.
HQ é arte complexa.
E quem não sabe disso, não é sinal de que a HQ é menor. É sinal de que leu pouco, estudou pouco e entendeu quase nada sobre linguagem.
Concluindo …
O que Davi e Ana estão fazendo — escolher HQs, mergulhar na paixão pela leitura dos quadrinhos, compartilhar com generosidade aquilo que amam — é uma revolução. Uma revolução silenciosa, doce e radical. Eles não estão apenas lendo quadrinhos. Eles estão dizendo pro mundo:
“Eu existo. Eu escolho. Eu penso. Eu sinto. Eu não aceito caber no que vocês acham que eu deveria ser.”
E isso vale mais do que qualquer diploma, qualquer nota, qualquer aprovação de quem ainda não entendeu que o mundo mudou — e quem não acompanhar, vai virar peça de museu.
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