P. EaD: A linguagem das travessias

Quando as crianças lêem quadrinhos, assistem animes, criam avatares e compartilham teorias no TikTok, elas não estão apenas se distraindo. Estão traduzindo o mundo em narrativas possíveis — fragmentadas, visuais, sonoras, emocionais. Estão, como diria Walter Benjamin, resgatando a experiência viva da narração, não mais como monopólio da tradição oral, mas como uma forma de existir em rede, em remix, em metamorfose.

1. Jenkins e a cultura da convergência

Henry Jenkins nomeou com precisão o fenômeno que Ana e Davi vivem: cultura da convergência. Não se trata apenas de várias mídias coexistirem, mas das histórias e seus personagens se espalharem entre elas, convocando os jovens a serem protagonistas da experiência midiática.

Em Naruto, por exemplo, os jutsus têm nomes, lógicas e linhagens como se fossem sistemas filosóficos. Em One Piece, a geografia é uma metáfora da liberdade e da resistência. Heartstopper é desenhado com uma delicadeza que pulsa como música. Chainsaw Man implode a linearidade clássica com angústia e niilismo gráfico. Todos esses mundos transbordam para fora de suas mídias de origem: ganham fanarts, fanfics, vídeos-ensaio, playlists e memes. Isso não é superficialidade — é participação estética. É criação coletiva de sentido.

2. McCloud e o espaço entre os quadros

Scott McCloud nos ensinou que a linguagem dos quadrinhos acontece nos espaços entre os quadros. É o leitor quem preenche os silêncios, conecta as cenas, cria movimento.

Ana e Davi vivem isso de forma natural.

 Eles entendem que o que não é mostrado também fala. Que a pausa é parte da ação. E que toda narrativa é, ao mesmo tempo, presença e ausência — como em Your Lie in April, onde a música carrega o luto, ou Orange, onde o tempo é uma carta, um desejo, uma tentativa de redenção. Ler quadrinhos é pensar o tempo e a memória em fragmentos. E isso é profundamente filosófico.

3. Kress e van Leeuwen: a leitura multimodal

Gunther Kress e Theo van Leeuwen chamam atenção para o fato de que hoje não lemos apenas textos. Lemos imagens, cores, gestos, trilhas sonoras, enquadramentos. E cada uma dessas linguagens tem sua gramática própria.

Ana e Davi, quando assistem Haikyuu!! ou Blue Lock, não estão apenas vendo esportes. Estão lendo o drama da superação, da frustração, da construção do coletivo, da formação do eu em meio ao outro. Estão aprendendo como os corpos se comunicam, como o silêncio de um personagem diz mais do que um discurso, como a câmera sugere o que ainda não se sabe. Tudo isso é alfabetização multimodal, e eles estão fluentes.

4. Ito e Livingstone: redes de aprendizagem informal

Mizuko Ito e Sonia Livingstone defendem que o aprendizado real das crianças e jovens hoje não acontece só nas escolas, mas em redes informais: fandoms, jogos, redes sociais, grupos de troca, comunidades criativas.

Ana e Davi aprendem mais sobre ética, estrutura social, luto, tempo, desejo, responsabilidade e política vendo Attack on Titan ou Death Note do que se assistissem a uma aula expositiva. Aprendem junto com os outros, trocando, debatendo, reconstruindo a história no grupo de amigos, no Pinterest, no YouTube, com o ChatGPT ou DeepSeek. Eles não são passivos. São curadores da própria experiência.

5. Walter Benjamin: aura, reprodução e infância

Benjamin dizia que, na modernidade, a obra de arte perde sua “aura” ao ser reproduzida. Mas talvez o que Ana e Davi vivem seja outra coisa: uma nova aura, que nasce da recriação coletiva, da experiência compartilhada, do gesto de amar uma história ao ponto de recontá-la mil vezes, de mil jeitos.

Em Adventure Time e Demon Slayer, em Avatar: A Lenda de Aang ou Skip and Loafer, há sempre a sensação de que algo precioso está acontecendo — uma amizade, um rito, um encontro, uma despedida. E isso vibra com força, como acontecia nas histórias contadas ao pé do fogo. A infância digital livre é, nesse sentido, uma nova forma de aura. Eles não brincam de viver. Eles brincam para viver. E isso é, talvez, o gesto mais revolucionário de todos

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